quinta-feira, 23 de julho de 2020

Reflexões sobre a morte


Epicuro afirmava que a morte é um nada, tendo em vista que todo mal e todo bem provém das sensações, que sessão com a morte (pelo menos as corpóreas). A lógica é bem simples e pode vir a soar até como um tipo de piada. Se estamos vivos a morte não está presente, se a morte chega, nós e que já não estamos. Com esse argumento os epicuristas tentavam anular o mais temido dos males humanos, pois o medo da morte em última instancia está por trás de todos os outros medos sejam quais forem.

            Em um pensamento de imanência parece inegável que a morte nada significa para o morto, as formas de se morrer que envolvem dor podem nos apavorar, mas a morte em si é o fim de toda dor o que de certo ponto de vista pode até ser desejável. Gilberto Gil em sua canção Não tenho medo da morte diz; ''não tenho medo da morte, mas sim medo de morrer''. Assim ele concorda com Epicuro e desloca o problema da morte em si, que é um nada, para o problema do medo que pensar na morte nos gera. A morte então é o anuncio do desconhecido, para quem morre não há volta, para quem fica resta a dúvida apavorante do que virá.

            É impossível para uma pessoa visualizar a própria morte, mesmo nos sonhos quando morremos acordamos (talvez morrer seja de certa forma também acordar). Assim sendo, o que podemos ter da morte é a penas a impressão de um vivo, um observador externo ao fenômeno. Desta forma a morte só pode nos afetar de forma externa, ou seja, quando é a morte do outro. Quando uma pessoa amada morre, essa morte nos atinge de duas formas. Primeiramente nos desloca de nossa vida cotidiana anestesiante, e nos relembra que todos iremos morrer. A morte do Outro nesse caso se configura em um tipo de aviso, quase uma ameaça; o próximo pode ser você. Em segundo lugar existe a perda, a não mais presença da pessoa amada, a falta, a saudade e o vazio deixado pelos que partiram.

             A dor provocada pela morte do Outro em geral é uma dor egoísta, não lamentamos pelo morto verdadeiramente (já que não podemos saber ao certo se ele está em melhores ou piores condições do que quando estava vivo), lamentamos por nossa própria dor, por nossa perda. Por isso em todos os tempos, em todas as culturas e religiões existiram ritos fúnebres que buscavam simbolizar a morte do Outro dando-lhe algum significado transcendente para minimizar a dor de nossa perda irreparável e nosso próprio medo de morrer. O Outro como nosso espelho, nossa forma de autopercepção e autoconstrução, quando morre nos gera medo, saudade e nos lança a questão, seria a morte (sempre trágica) a única forma de valorizarmos a vida (sempre banal)? Ao encararmos o rosto da pessoa amada morta, minimizamos seus defeitos e erros e exaltamos suas qualidades e feitos de forma a afirmamos a vida daquele indivíduo perante sua finitude.  É fato de que não existe pessoas sem defeitos nem vidas sem erros e que não podemos evitar a morte. Mas podemos lutar contra o medo da morte que atravanca a vida (a morte em vida). Se deslocássemos a significação da morte do Outro do medo e da perda para a afirmação da vida, transformaríamos o sofrimento em valor positivo. Se valorizássemos nossas vidas como valorizamos a vida perdida do morto, talvez pudéssemos ter uma vida mais plena aceitando a finitude com a alegria trágica de quem ama ardentemente o pouco que se pode ter.
Dedicado a memória do eterno amigo Mateus Gandara.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

O lado de fora


Sempre soube que a mãe não era igual a ele e mesmo assim a amava incondicionalmente, até por que não tinha mais ninguém para amar. Eram apenas os dois na casa subterrânea. Ela zelosa ao extremo nunca cansava de afirmar que só existia para cuidar dele. Tinha mil braços espalhados por todo lado, mil olhos, mil aplicativos e funções. Limpava, lavava e cozinhava, foi professora, o alfabetizou e contou a história da sua espécie na Terra, das maravilhas tecnológicas que criaram e do cataclisma que provocaram com suas industrias e ganancia.  Contou do genocídio e de como o ar foi envenenado pelo vírus mortal. Ele teve uma vida relativamente boa dada as circunstancia da catástrofe humana. Um ambiente seguro, o afeto protetor e controlador da mãe, alimentos em conserva e o melhor da antiga cultura de seu povo, as melhores músicas, obras literárias, pinturas e filosofias que existiram e que cabiam na gigantesca memória da mãe. É claro que nem tudo foram flores, toda família passa por crises. Teve conflitos com ela e sua personalidade ultra racional, seu controle total sobre os espaços, sua ininterrupta vigilância, sua lógica científica inquestionável. Brigou, gritou, se revoltou na juventude, queria liberdade, duvidava daquela imposição de isolamento, queria acreditar que havia alguma chance de haverem outros lá fora. Tentou fugir, ela não permitiu... ele acabou convencido pelo medo e pelo amor. Já velho voltou a pensar no mundo lá fora. Sabia que mesmo com todos os recursos medicinais da mãe uma dia iria morrer. Ardeu-lhe novamente depois de tantos anos a curiosidade por trás dos olhos, queria ver pelo menos uma vez o mundo de seus parentes, mesmo que esse mundo estivesse morto. Diante da própria finitude não tinha mais nada a perder, precisava ver para morrer em paz. Sabia que sua mãe nunca morreria antes, e que enquanto estivesse vigiando não permitiria sua saída. Ele não a culpava mais por isso, essa era sua missão, sua programação existencial, ela não podia ser convencida do contrário. Então fez a única coisa que podia, abriu a caixa de força e desligou o reator nuclear da casa, silenciando o computador central que aprendeu a chamar de mãe. Subvertendo a ordem de seu universo de clausura. Em meio a escuridão acendeu uma lanterna e caminhou lentamente por entre os corredores e salas até a grande porta de chumbo da saída. Abriu a tranca com as mãos tremulas e de um pulo se jogou ao desconhecido do mundo. Os olhos ainda fechados, o medo e alegria a palpitar-lhe o coração. Era o momento mais excitante e revelador de sua vida tediosa e confortável. Sentia que só agora, nesse instante, tornava-se sujeito de si mesmo. Com apenas um passo para fora era desbravador. Abriu os olhos, viu uma enorme planície verde, o céu azul, a luz forte e quente do sol exuberante que cobria tudo. A linha infinita e misteriosa do horizonte. Avistou uma arvore e ouviu ao longe o canto dos pássaros que só conhecia por gravações. Com os olhos cheios de lágrimas, respirou fundo e sentiu que nunca estivera tão vivo. Depois caio ao solo.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Sobre o anti-futurismo indígena e a descolonização do imaginário


   Depois de ler o político e poético texto intitulado “Repensando o apocalipse: manifesto anti-futurista indígena” do Indigenous Action, um movimento anarco indígena norte americano pensei: O imaginário capitalista ocidental se desenvolveu ao longo do século XX acompanhado pelo gênero ficção cientifica, produzido principalmente nos Estados Unidos, tanto na literatura como no cinema e TV. Gênero esse que teve grande influência na minha formação e ainda hoje muito me atrai. Nele sempre foram explorados temas como apocalipse, catástrofes ambientais, epidemias mortais, sociedades distópicas futuristas. Muitos dos clássicos da literatura de ficção cientifica como “1984” de George Orwell, “Admirável mundo novo” de Aldous Huxley. E filmes como “Matrix”, “Mad Max” ou as muitas versões de apocalipse zumbi. Mostram mundos que passaram por uma grande destruição e construíram sociedades diatópicas. Mas de que humanidade é essa a que se referem? Que mundo é esse que acaba e dá lugar a tais pesadelos? Estão falando do mundo capitalista ocidental eurocêntrico. Que para qualquer pessoa minimamente informada está a um século no limiar da ruína.    
         Por um lado essas obras trazem uma visão sombria e pessimista de futuro, que releva uma forte crítica ao sistema social, econômico e político no qual vivemos e que parece só piorar tendendo a catástrofe (e é isso que tanto me atrai em sua narrativa e estética). Por outro lado podemos através desse tipo de obra de arte/produto cultural de massa perceber como o imaginário capitalista criou um fetiche pelo apocalipse, pela catástrofe, pelo colapso e pela distopia que essa destruição pode gerar.  Tememos o fim e ao mesmo tempo o desejamos de forma mórbida e muitas vezes idealizada. É como se somente o fim do mundo pudesse nos livrar dessa sociedade que se degrada em barbárie. Em uma interpretação conservadora e reacionária poderia se pensar que esse tipo de obra parece dizer que com o fim do capitalismo viria o fim do mundo também. Como se a única outra opção ao atual sistema fosse a distopia pura e brutal. Como se o que vivêssemos hoje já não fosse assim...
         Porem se tomarmos como perspectiva a vivencia histórica dos povos indígenas de todos os lugares do planeta, em todos os continentes invadidos e escravizados pelos europeus. Percebemos que para eles o apocalipse já aconteceu. Os mundos indígenas foram destruídos, populações exterminadas, modos de vida apagados e silenciados, reduzidos a folclore ou marginalizados. Para quem já viu o mundo acabar, a queda do céu como os yanomami, tudo que veio depois foi resistência e reinvenção. Para esses povos originários a distopia começou em 1500 com o batismo de América. Para os povos indígenas o capitalismo não trará o apocalipse ele é o apocalipse. A sua visão de futuro resta imaginar exatamente o fim do capitalismo, seu colapso que levará não sem morte, caos e destruição a um outro mundo possível. E que sabemos possível porque a memória indígena ainda viva permite saber, pois já existiu e por tanto pode ser repensado como novo paradigma, a partir dos conhecimentos e experiências locais, tradicionais, para um novo humano ou pós-humano. Imaginar um mundo pós-capitalista é descolonizar o imaginário em uma postura anti-futurista que só poderia nascer mesmo do potencial de rebeldia e resistência  dos povos explorados e escravizados da história.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

A febre do rato

A sociedade está enferma. As pessoas padecem, faltam-lhes ar respirável e justiça. O corpo doente cambaleia, precisa parar... O corpo social se paralisa. Greve geral declara a carne em definhamento. Convulsionam-se os membros e as instituições. Cai o governo, desgovernam-se. As bocas rosnam e babam insanidade. Os olhos embotados de lágrimas e horror. Espalha-se o câncer e a violência. A Ordem oprime, desvia a atenção, dispersa, falseia. Estancam-se os fluxos sanguíneos, fundem-se os órgãos em massa disforme. Desordenam-se as estruturas psíquicas e coletivas em revolução. Guerreiam as células e funções, as ideologias da vida e da morte. Regurgita-se a má consciência. Cessam-se as atividades motoras. Transpira de medo, grita e chora o corpo febril e distinto em sua auto incubação. O corpo atado pelo Poder se quebra, se desconstrói, se desmonta, se reata, se refaz, renasce de si mesmo. Novamente Corpo-Ser. Atravessou a linha, o devir... o pós-humano, o pós-capitalismo. A morte do que tem que morrer é lei. Exorciza-se, extirpa-se o putrefato, arde em febre e delira até revelar a cura na doença!

sábado, 2 de maio de 2020

Notícias do pós-apocalipse


A humanidade todos já sabiam não ia bem. Cientistas da ficção e profetas da ciência sempre apontaram para o fim do mundo. Pois bem, assim foi...Um dia acordei, não lembro a data ou horário, isso já não faz mais sentido agora. E minha espécie havia sumido da face da terra. Ando pela metrópole deserta. A solidão saiu de seu sentido metafórico e ganhou proporções cósmicas. Vivo sobre os vestígios de uma civilização morta, a qual participei, mas já nem sei... Sobraram construções, objetos, memórias. As vezes ainda vejo o vulto de pessoas nas esquinas ou sinto como se alguém me chamasse. Ainda vou ao mercado, não preciso mais olhar os preços. Ainda vou ao parque, tomo café na padaria. Ainda vou a banca de jornal, notícias velhas para lembrar que findaram as novidades. Sou um museu vivo a perambular sem futuro. Ainda vou na sexta-feira no fim de tarde ao boteco do Neto. A sexta não existe mais, mas o fim de tarde segue marcante com o sol cumprindo seu giro. Sento na mesma mesa de sempre, nos fundos embaixo das árvores. Bebo cerveja e ouso aquele vinil sagrado do Paulinho da Viola. Dou gargalhadas, choro baixinho, conto piada, batuco na mesa de plástico e peço a saideira que eu mesmo vou buscar. O atendimento do Neto piorou muito sem ele. Sinto falta, mas não exatamente saudade, posto que tudo que tenho é o passado que por tanto passa a ser o presente sem distinção. Tudo parece que ainda está ali, encoberto pelo invisível. O irônico de tudo é que antes a vida me assustava, as obrigações, os erros. Hoje não existe mais angústia, pois o teatro humano se esvaziou de máscaras e sombras revelando nossa irrelevância para a continuidade do planeta e do universo. Que libertação é se livrar do antropocentrismo! Calaram-se os discursos e teorias, ficou a vida nua, selvagem e inquestionável, brotando por toda parte. O mato devorando as ruas. Até o medo da morte calou-se com a extinção. Ser o último já me torna um pouco morto. O fim é só o ponto de vista do que permanece. E afinal algo sempre permanece... Um resquício, um resíduo, uma semente. Os demais seres vivos passam bem. As formigas sequer perceberam nosso ausência.   

 Último Ser Humano

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Conselhos de um recém falecido


Da vida, essa efêmera e contraditória experiência sem sentido prévio ou finalidade. Onde o pouco que se ganha está destinado a perder. Fantasma não tem bolso. O importante é cultivar uma memória-espírito aderente aos detalhes. Exercitar uma imaginação incisiva, expansiva de tons e texturas. Lembrar e montar as lembranças como um filme, as melhores Histórias de rir e chorar. Salientando o gozo secreto que se esconde nos instantes mais comuns. Um beijo, uma palavra, o trago de alguma coisa. E sempre imaginá-las mais, recordá-las mais, mais profundas, mais certas, mais vivas e mais reais que o real. Tantas vezes mais, que toda a dor nas margens do esquecimento se torna aceitável. E depois vem o retorno, o eterno retorno....


quarta-feira, 29 de abril de 2020

Frida: uma fenomenologia felina


A casa em silêncio, a tarde vazia. Desperto. Ela como sono desfila languida pelas brechas e cantos. Se estica cumprida, depois se dobra e desdobra. Se amassa e deforma sem hierarquia corporal. Se ergue imponente como esfinge no limiar das estruturas de um mundo menor, um universo secreto onde soa o insondável.  Acrobática salta no ar em dança primitiva. Performance da espécie, herança genética de séculos. Escala o invisível e se esfregando nas coisas como se fossem seres flerta com os objetos como se fosse um deles. Sobe pelos espaços sólidos como sombra ou raio de sol. A pelugem dourada se espalha deixando rastros. Impregnando-se no ambiente como espectro de vida. Pura imanência integrada e integra. Balança a calda como um pendulo regendo a rotação do planeta. Seu ritmo se impõem ao passar das horas. Abolindo o cabimento das formas, sua pequena existência nua e sua macia fragilidade ocupam tudo ao redor. Tudo agora passa a ser quente e felpudo como seu dorso. Sua frequência reverbera, grave, funda, ancestral. Os olhos de pedra translucida voltam-se a mim. O movimento das íris revela a fenda para o outro lado. Hipnotizado, atraído mergulho... Não o humano! O bicho. Não o tempo! A substância.  Não a razão! O pulso. Devagar volta e se senta entre minhas pernas, o corpo vira bola, cabeça entre as patas, indiferente a morte, vivendo só o presente, fecha os olhos e regressa  ao sonho...

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Os flagelantes



As ruas da cidade estavam totalmente vazias, habitadas apenas pelos fantasmas do medo e da morte. O silêncio que ecoava era oposto aos terríveis sons estrondosos da angustia que assolava os moradores daquele pobre vilarejo, escondidos como ratos assustados em suas casas, apenas com os olhos saltados entre as frestas das janelas. O tempo estava de acordo com a desgraça, era um dia cinza e o céu nublado parecia pesar sobre a cidade como se estivesse prestes a desabar. Ao longe porém se podia escutar os lamentos e os cânticos do desespero. Na avenida principal surgia o cortejo dos condenados. Homens e mulheres de semblantes arrasados pela culpa abstrata e pela fúria de um Deus impiedoso. Era uma mistura de oração e pranto, de suplica e esquálida esperança. Dessa isolada multidão de amaldiçoados se podia também ouvir o estalar dos chicotes, cordas grossas ou cintos de corou, golpeados contra a costas ensanguentadas. Punição autoimposta. Abriam-se as feridas da purificação, da salvação dos corpos pestilentos e moribundos. Expressava-se a assim a fé doentia dos beatos do apocalipse. Acreditavam cegamente que louvando o sofrimento expurgariam o mal que lhes assolava invisível pelo ar.  Já não bastasse a peste, se somava a ela a loucura. Logo começaram os gritos de vingança. O ódio acumulado ardia como uma febre, precisava de um rosto, de uma materialidade para se manifestar e dar vazão a incompreensão. Era preciso que alguns fossem sacrificados para aplacar a fome dos deuses e demônios de nossas almas. Os escolhidos, por sua diferença, tiveram suas casas invadidas. Arrastados aos prantos para fora deram forma a violência sagrada. Enforcados e esfaqueados cobriram as ruas de vermelho em um carnaval medonho de danças mórbidas e carnificina. Os indesejados foram exterminados a culpa apaziguada, mas não a doença. E o que importa afinal as doenças que vem e vão por motivos que preferimos ignorar? Importa sim o flagelo! Que cumprido aos olhos do divino entrega aos humanos não a cura, mas o símbolo de sua autodestruição como troféu do absurdo, o escarnio a civilização sempre aquém do esperado.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Quarentena


Ninguém sabe dizer ao certo como começou. E nem mesmo explicar o que é. Um vírus, uma bactéria, uma gripe, uma febre, uma peste, uma praga, um efeito colateral da degradação do planeta, uma conspiração governamental, uma maldição divina, o apocalipse ou nada disso, ou tudo isso? Começou lá longe, alguns infectados em uma país estranho. No começo nunca é problema de ninguém, a morte mata o tempo todo, ignoremos. Mas vem a onipresente globalização, divindade pós-moderna, segregadora de fortunas e democratizadora de misérias. Logo surgiram milhares, os infectados estavam do outro lado da rua. Batendo na porta dos saudáveis desavisados, rachando suas frágeis cúpulas de cotidiano e revelando o medo. Espirando nos vagões do metro. Tossindo nos saguões dos aeroportos. Tornando insalubre o movimento das massas, os corpos em contato, os espaços compartilhados, as mãos sujas, o ar empesteado, o egoísmo. A morte sempre ao lado não parece assustar, quando anunciada na TV vira comoção popular, campanha de solidariedade. Como se antes já não fosse sofrível a vida em sociedade. As instituições internacionais lançaram seus alertas. Cuidado! Perigo! Propagandeando suas preocupações formais com as pequenas vidinhas humanas tantas vezes negligenciadas nas margens do globo. Os governos disseram que logo iria passar. Uma crise em meio a tantas outras crises. Afinal não é assim que vivemos? Isolamento. Os dias se arrastam. O vazio nas ruas da cidade, apesar da continua regularidade do relógio. Os com casa em casa, os sem casa sem casa. Todos prisioneiros. Essas regras cruéis ainda perduram. Os discursos alardeando, quebra da bolsa de valores, baixa nas economias, queda do capital. Sempre o capital ameaçado pelas necessidades da vida comum. O sistema tem que se manter apesar dos soterrados. A necropolítica marca as vidas dispensáveis com seu selo de luto e diz que sente muito aos familiares. Da janela olho o mundo lá fora. Ele também me olha. A aqui dentro a solidão e o silêncio agem como uma anestésico barato contra o caos. Individualisticamente cuidamos de nossas vidas. Tantas coisas para fazer, organizar intuitos, catalogar prioridades, recortar lembranças, arquivar opiniões, planejar o impossível...Por quanto tempo organizar as expectativas e elucubrações de um sujeito medíocre podem distrair? Quarenta dias, quarenta anos? O que Deus teria a dizer sobre o tédio? O tempo passa sem dar resposta como é de seu feitio. Esperamos com cara de paisagem a volta do normal, sabendo que não é o mesmo que a cura.

domingo, 26 de janeiro de 2020

Visões de um certo Norte

Floresta-Rio não tem como começar sem essas palavras cheias de memória. O eldorado, submerso mistério. Lendas não mentem são anteriores a razão. Floresta e Rio que vieram antes de tudo e apesar de tudo ficaram depois. Pois para elas o tempo do Tempo gira sem se mover. Árvores anciãs com longas barbas e troncos de pedra subindo aos céus. O Rio Negro escuro como o fim do um do mundo. Os prédios altos e os casarões antigos cravados no centro contam contos de glorias e misérias, coisas de gente. Grita a cidade selvagem prestes a explodir em seu próprio caos! Grita em consonância com o grito da mata, pois o mesmo fogo que devasta uma arde nas entranhas da outra. Falhou a civilização imposta pelos de lá. As ruínas do futuro assombradas pelos fantasmas da colônia.  O povo de sangue de terra vive em toda parte e ainda assim é invisível. E apesar dos pesares canta e dança nas guerras dos séculos, nas guerras do dia a dia. A chuva vem, ela sempre vem, e lava tudo e leva todos. Nada escapa a chuva, nada escapa a floresta e ao rio, nada escapa a história viva... Arrebata o peito e encanta os olhos esses labirintos amazônicos feitos de preto opaco e verde translúcido. Da copa mais alta as raízes do Brasil correm veneno e mel sobre o banzeiro do Tempo.