quarta-feira, 29 de abril de 2020

Frida: uma fenomenologia felina


A casa em silêncio, a tarde vazia. Desperto. Ela como sono desfila languida pelas brechas e cantos. Se estica cumprida, depois se dobra e desdobra. Se amassa e deforma sem hierarquia corporal. Se ergue imponente como esfinge no limiar das estruturas de um mundo menor, um universo secreto onde soa o insondável.  Acrobática salta no ar em dança primitiva. Performance da espécie, herança genética de séculos. Escala o invisível e se esfregando nas coisas como se fossem seres flerta com os objetos como se fosse um deles. Sobe pelos espaços sólidos como sombra ou raio de sol. A pelugem dourada se espalha deixando rastros. Impregnando-se no ambiente como espectro de vida. Pura imanência integrada e integra. Balança a calda como um pendulo regendo a rotação do planeta. Seu ritmo se impõem ao passar das horas. Abolindo o cabimento das formas, sua pequena existência nua e sua macia fragilidade ocupam tudo ao redor. Tudo agora passa a ser quente e felpudo como seu dorso. Sua frequência reverbera, grave, funda, ancestral. Os olhos de pedra translucida voltam-se a mim. O movimento das íris revela a fenda para o outro lado. Hipnotizado, atraído mergulho... Não o humano! O bicho. Não o tempo! A substância.  Não a razão! O pulso. Devagar volta e se senta entre minhas pernas, o corpo vira bola, cabeça entre as patas, indiferente a morte, vivendo só o presente, fecha os olhos e regressa  ao sonho...

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Os flagelantes



As ruas da cidade estavam totalmente vazias, habitadas apenas pelos fantasmas do medo e da morte. O silêncio que ecoava era oposto aos terríveis sons estrondosos da angustia que assolava os moradores daquele pobre vilarejo, escondidos como ratos assustados em suas casas, apenas com os olhos saltados entre as frestas das janelas. O tempo estava de acordo com a desgraça, era um dia cinza e o céu nublado parecia pesar sobre a cidade como se estivesse prestes a desabar. Ao longe porém se podia escutar os lamentos e os cânticos do desespero. Na avenida principal surgia o cortejo dos condenados. Homens e mulheres de semblantes arrasados pela culpa abstrata e pela fúria de um Deus impiedoso. Era uma mistura de oração e pranto, de suplica e esquálida esperança. Dessa isolada multidão de amaldiçoados se podia também ouvir o estalar dos chicotes, cordas grossas ou cintos de corou, golpeados contra a costas ensanguentadas. Punição autoimposta. Abriam-se as feridas da purificação, da salvação dos corpos pestilentos e moribundos. Expressava-se a assim a fé doentia dos beatos do apocalipse. Acreditavam cegamente que louvando o sofrimento expurgariam o mal que lhes assolava invisível pelo ar.  Já não bastasse a peste, se somava a ela a loucura. Logo começaram os gritos de vingança. O ódio acumulado ardia como uma febre, precisava de um rosto, de uma materialidade para se manifestar e dar vazão a incompreensão. Era preciso que alguns fossem sacrificados para aplacar a fome dos deuses e demônios de nossas almas. Os escolhidos, por sua diferença, tiveram suas casas invadidas. Arrastados aos prantos para fora deram forma a violência sagrada. Enforcados e esfaqueados cobriram as ruas de vermelho em um carnaval medonho de danças mórbidas e carnificina. Os indesejados foram exterminados a culpa apaziguada, mas não a doença. E o que importa afinal as doenças que vem e vão por motivos que preferimos ignorar? Importa sim o flagelo! Que cumprido aos olhos do divino entrega aos humanos não a cura, mas o símbolo de sua autodestruição como troféu do absurdo, o escarnio a civilização sempre aquém do esperado.