quinta-feira, 16 de abril de 2020

Os flagelantes



As ruas da cidade estavam totalmente vazias, habitadas apenas pelos fantasmas do medo e da morte. O silêncio que ecoava era oposto aos terríveis sons estrondosos da angustia que assolava os moradores daquele pobre vilarejo, escondidos como ratos assustados em suas casas, apenas com os olhos saltados entre as frestas das janelas. O tempo estava de acordo com a desgraça, era um dia cinza e o céu nublado parecia pesar sobre a cidade como se estivesse prestes a desabar. Ao longe porém se podia escutar os lamentos e os cânticos do desespero. Na avenida principal surgia o cortejo dos condenados. Homens e mulheres de semblantes arrasados pela culpa abstrata e pela fúria de um Deus impiedoso. Era uma mistura de oração e pranto, de suplica e esquálida esperança. Dessa isolada multidão de amaldiçoados se podia também ouvir o estalar dos chicotes, cordas grossas ou cintos de corou, golpeados contra a costas ensanguentadas. Punição autoimposta. Abriam-se as feridas da purificação, da salvação dos corpos pestilentos e moribundos. Expressava-se a assim a fé doentia dos beatos do apocalipse. Acreditavam cegamente que louvando o sofrimento expurgariam o mal que lhes assolava invisível pelo ar.  Já não bastasse a peste, se somava a ela a loucura. Logo começaram os gritos de vingança. O ódio acumulado ardia como uma febre, precisava de um rosto, de uma materialidade para se manifestar e dar vazão a incompreensão. Era preciso que alguns fossem sacrificados para aplacar a fome dos deuses e demônios de nossas almas. Os escolhidos, por sua diferença, tiveram suas casas invadidas. Arrastados aos prantos para fora deram forma a violência sagrada. Enforcados e esfaqueados cobriram as ruas de vermelho em um carnaval medonho de danças mórbidas e carnificina. Os indesejados foram exterminados a culpa apaziguada, mas não a doença. E o que importa afinal as doenças que vem e vão por motivos que preferimos ignorar? Importa sim o flagelo! Que cumprido aos olhos do divino entrega aos humanos não a cura, mas o símbolo de sua autodestruição como troféu do absurdo, o escarnio a civilização sempre aquém do esperado.

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