Ninguém sabe dizer ao
certo como começou. E nem mesmo explicar o que é. Um vírus, uma bactéria, uma
gripe, uma febre, uma peste, uma praga, um efeito colateral da degradação do
planeta, uma conspiração governamental, uma maldição divina, o apocalipse ou
nada disso, ou tudo isso? Começou lá longe, alguns infectados em uma país
estranho. No começo nunca é problema de ninguém, a morte mata o tempo todo,
ignoremos. Mas vem a onipresente globalização, divindade pós-moderna,
segregadora de fortunas e democratizadora de misérias. Logo surgiram milhares,
os infectados estavam do outro lado da rua. Batendo na porta dos saudáveis
desavisados, rachando suas frágeis cúpulas de cotidiano e revelando o medo.
Espirando nos vagões do metro. Tossindo nos saguões dos aeroportos. Tornando
insalubre o movimento das massas, os corpos em contato, os espaços
compartilhados, as mãos sujas, o ar empesteado, o egoísmo. A morte sempre ao
lado não parece assustar, quando anunciada na TV vira comoção popular, campanha
de solidariedade. Como se antes já não fosse sofrível a vida em sociedade. As
instituições internacionais lançaram seus alertas. Cuidado! Perigo!
Propagandeando suas preocupações formais com as pequenas vidinhas humanas
tantas vezes negligenciadas nas margens do globo. Os governos disseram que logo
iria passar. Uma crise em meio a tantas outras crises. Afinal não é assim que
vivemos? Isolamento. Os dias se arrastam. O vazio nas ruas da cidade, apesar da
continua regularidade do relógio. Os com casa em casa, os sem casa sem casa.
Todos prisioneiros. Essas regras cruéis ainda perduram. Os discursos
alardeando, quebra da bolsa de valores, baixa nas economias, queda do capital.
Sempre o capital ameaçado pelas necessidades da vida comum. O sistema tem que
se manter apesar dos soterrados. A necropolítica marca as vidas dispensáveis
com seu selo de luto e diz que sente muito aos familiares. Da janela olho o mundo lá fora. Ele também
me olha. A aqui dentro a solidão e o silêncio agem como uma anestésico barato
contra o caos. Individualisticamente cuidamos de nossas vidas. Tantas coisas
para fazer, organizar intuitos, catalogar prioridades, recortar lembranças,
arquivar opiniões, planejar o impossível...Por quanto tempo organizar as
expectativas e elucubrações de um sujeito medíocre podem distrair? Quarenta
dias, quarenta anos? O que Deus teria a dizer sobre o tédio? O tempo passa sem
dar resposta como é de seu feitio. Esperamos com cara de paisagem a volta do
normal, sabendo que não é o mesmo que a cura.