quinta-feira, 26 de março de 2020

Quarentena


Ninguém sabe dizer ao certo como começou. E nem mesmo explicar o que é. Um vírus, uma bactéria, uma gripe, uma febre, uma peste, uma praga, um efeito colateral da degradação do planeta, uma conspiração governamental, uma maldição divina, o apocalipse ou nada disso, ou tudo isso? Começou lá longe, alguns infectados em uma país estranho. No começo nunca é problema de ninguém, a morte mata o tempo todo, ignoremos. Mas vem a onipresente globalização, divindade pós-moderna, segregadora de fortunas e democratizadora de misérias. Logo surgiram milhares, os infectados estavam do outro lado da rua. Batendo na porta dos saudáveis desavisados, rachando suas frágeis cúpulas de cotidiano e revelando o medo. Espirando nos vagões do metro. Tossindo nos saguões dos aeroportos. Tornando insalubre o movimento das massas, os corpos em contato, os espaços compartilhados, as mãos sujas, o ar empesteado, o egoísmo. A morte sempre ao lado não parece assustar, quando anunciada na TV vira comoção popular, campanha de solidariedade. Como se antes já não fosse sofrível a vida em sociedade. As instituições internacionais lançaram seus alertas. Cuidado! Perigo! Propagandeando suas preocupações formais com as pequenas vidinhas humanas tantas vezes negligenciadas nas margens do globo. Os governos disseram que logo iria passar. Uma crise em meio a tantas outras crises. Afinal não é assim que vivemos? Isolamento. Os dias se arrastam. O vazio nas ruas da cidade, apesar da continua regularidade do relógio. Os com casa em casa, os sem casa sem casa. Todos prisioneiros. Essas regras cruéis ainda perduram. Os discursos alardeando, quebra da bolsa de valores, baixa nas economias, queda do capital. Sempre o capital ameaçado pelas necessidades da vida comum. O sistema tem que se manter apesar dos soterrados. A necropolítica marca as vidas dispensáveis com seu selo de luto e diz que sente muito aos familiares. Da janela olho o mundo lá fora. Ele também me olha. A aqui dentro a solidão e o silêncio agem como uma anestésico barato contra o caos. Individualisticamente cuidamos de nossas vidas. Tantas coisas para fazer, organizar intuitos, catalogar prioridades, recortar lembranças, arquivar opiniões, planejar o impossível...Por quanto tempo organizar as expectativas e elucubrações de um sujeito medíocre podem distrair? Quarenta dias, quarenta anos? O que Deus teria a dizer sobre o tédio? O tempo passa sem dar resposta como é de seu feitio. Esperamos com cara de paisagem a volta do normal, sabendo que não é o mesmo que a cura.