sábado, 10 de julho de 2021

A cidade

Recito meus pensamentos em uma língua morta e sigo repetindo como um mantra pelas ruas adentro, como uma música interior a ressoar silenciosa pela solidão monumental da cidade branca, de horizonte infinito e o céu boquiaberto sobre nós. Avanço descompassado cortando o espaço geometrizado. Em um movimento interno, em um piscar de olhos, cruzo por entre blocos de concreto armado e vidro, atravessando as cortinas verdes dos jardins suspensos em decadência. Vejo passar por mim sombras, projeções cinematográficas do que sei, que revelam em suas imagens turvas o que não sei, e talvez, não se possa saber, se não por um único instante antes do esquecimento. História sem fim, narração sem sujeito. Caminho em suspenso, desvio de mim, já não consigo me alcançar. E subo, pairando, distante, distante... de onde tudo parece pequeno, delicado como uma maquete de brinquedo, um mundo de formigas, tudo prestes a desaparecer. Nuvens, sonhos, eixos em um papel...

sábado, 22 de maio de 2021

Quarentena - Parte II

Em casa não há mais silêncio, antes só eu falava comigo mesmo em solidão, agora outras vozes entraram sem pedir licença nos espaços fundidos de meus dias de eterna quarentena. Acordo em frente a uma tela, almoço em frente a uma tela, trabalho em frente a uma tela, descanso em frente a uma tele. E lá fora é que está a clausura! A máscara que cobre o rosto engana, protege a saúde, mas abafa a voz, engasga o grito, compactua com a omissão, enquanto os sem máscaras blasfemam e bafejam brutalidades chauvinistas na cara do bom senso, paralisado em choque. E aos domingos (que deveriam ser dias mais quietos a não ser pelo grito de gol) as grandes avenidas da inaugurada necrópole são tomadas pela marcha do progresso as avessas, o verde-amarelismo se espalhou como um vírus pelas redes e desafiando a razão transformou pacatos cidadãos de bem (fascistas enrustidos) em furiosos rinocerontes selvagens que marchavam em bando pelas ruas esbravejando e erguendo bandeiras de um ufanismo chinfrim. Porque não defender a ditadura e ser democrata? Tenho livre arbítrio posso fazer o que eu quiser! Gritou um deles pela janela de seu tanque blindado, quatro por quatro, com mira lazer e munição extra. O meu partido é o meu país, que é a minha casa, minha propriedade privada, minha família, minha riqueza. Por isso eu voto sim, urrou em um ataque de raiva, um outro sujeito de terno e gravata com uma bíblia na mão. Ao mesmo tempo em que os cemitérios ficam lotados, e os donos da vida (que deixam morrer) enriquecem em meio ao holocausto, eu participo de telereuniões, faço teleatividades, vejo teleaulas, tenho teleencontros. Apesar das quinze telehoras por dia, incluindo os finais de semana quando me dedico a produção da minha imagem virtual pela telavida, ainda encontro tempo para cuidar da minha sanidade mental de indivíduo atomizado, alienado como sujeito do desejo, reduzido a peça do capital. Faço minha teleyoga respirando fundo para não explodir, vendo a nova influencer olavista da internet falar sobre espiritualidade neoliberal e as maravilhas das meditações guiadas de um coach holístico. Ouvindo o podcast do fim do mundo diário falar de terra plana, de anticiência, de antivacina, de nova política. Gripezinha mortal e chacina na segunda-feira de manhã, os números das almas perdidas extrapolando os cálculos dos estatísticos do caos com seus gráficos sem rostos. E apesar da desgraça que recai na maioria, nada parece poder para os devoradores da terra, os parasitas do futuro. As cartas de repúdio e pedidos de socorro se amontoam em pilhas nas portas do palácio, seguindo a risca os procedimentos democráticos da república. As autoridades analisam a situação e apostam na paciência dos moribundos. Silêncio! Não vejo nada a frente, mas posso sentir o reverberar sinistro em moto-contínuo de um passado de chumbo e botas… E agora José? Tiraram até teu Carnaval!

 


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Reflexões sobre a morte


Epicuro afirmava que a morte é um nada, tendo em vista que todo mal e todo bem provém das sensações, que sessão com a morte (pelo menos as corpóreas). A lógica é bem simples e pode vir a soar até como um tipo de piada. Se estamos vivos a morte não está presente, se a morte chega, nós e que já não estamos. Com esse argumento os epicuristas tentavam anular o mais temido dos males humanos, pois o medo da morte em última instancia está por trás de todos os outros medos sejam quais forem.

            Em um pensamento de imanência parece inegável que a morte nada significa para o morto, as formas de se morrer que envolvem dor podem nos apavorar, mas a morte em si é o fim de toda dor o que de certo ponto de vista pode até ser desejável. Gilberto Gil em sua canção Não tenho medo da morte diz; ''não tenho medo da morte, mas sim medo de morrer''. Assim ele concorda com Epicuro e desloca o problema da morte em si, que é um nada, para o problema do medo que pensar na morte nos gera. A morte então é o anuncio do desconhecido, para quem morre não há volta, para quem fica resta a dúvida apavorante do que virá.

            É impossível para uma pessoa visualizar a própria morte, mesmo nos sonhos quando morremos acordamos (talvez morrer seja de certa forma também acordar). Assim sendo, o que podemos ter da morte é a penas a impressão de um vivo, um observador externo ao fenômeno. Desta forma a morte só pode nos afetar de forma externa, ou seja, quando é a morte do outro. Quando uma pessoa amada morre, essa morte nos atinge de duas formas. Primeiramente nos desloca de nossa vida cotidiana anestesiante, e nos relembra que todos iremos morrer. A morte do Outro nesse caso se configura em um tipo de aviso, quase uma ameaça; o próximo pode ser você. Em segundo lugar existe a perda, a não mais presença da pessoa amada, a falta, a saudade e o vazio deixado pelos que partiram.

             A dor provocada pela morte do Outro em geral é uma dor egoísta, não lamentamos pelo morto verdadeiramente (já que não podemos saber ao certo se ele está em melhores ou piores condições do que quando estava vivo), lamentamos por nossa própria dor, por nossa perda. Por isso em todos os tempos, em todas as culturas e religiões existiram ritos fúnebres que buscavam simbolizar a morte do Outro dando-lhe algum significado transcendente para minimizar a dor de nossa perda irreparável e nosso próprio medo de morrer. O Outro como nosso espelho, nossa forma de autopercepção e autoconstrução, quando morre nos gera medo, saudade e nos lança a questão, seria a morte (sempre trágica) a única forma de valorizarmos a vida (sempre banal)? Ao encararmos o rosto da pessoa amada morta, minimizamos seus defeitos e erros e exaltamos suas qualidades e feitos de forma a afirmamos a vida daquele indivíduo perante sua finitude.  É fato de que não existe pessoas sem defeitos nem vidas sem erros e que não podemos evitar a morte. Mas podemos lutar contra o medo da morte que atravanca a vida (a morte em vida). Se deslocássemos a significação da morte do Outro do medo e da perda para a afirmação da vida, transformaríamos o sofrimento em valor positivo. Se valorizássemos nossas vidas como valorizamos a vida perdida do morto, talvez pudéssemos ter uma vida mais plena aceitando a finitude com a alegria trágica de quem ama ardentemente o pouco que se pode ter.
Dedicado a memória do eterno amigo Mateus Gandara.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

O lado de fora


Sempre soube que a mãe não era igual a ele e mesmo assim a amava incondicionalmente, até por que não tinha mais ninguém para amar. Eram apenas os dois na casa subterrânea. Ela zelosa ao extremo nunca cansava de afirmar que só existia para cuidar dele. Tinha mil braços espalhados por todo lado, mil olhos, mil aplicativos e funções. Limpava, lavava e cozinhava, foi professora, o alfabetizou e contou a história da sua espécie na Terra, das maravilhas tecnológicas que criaram e do cataclisma que provocaram com suas industrias e ganancia.  Contou do genocídio e de como o ar foi envenenado pelo vírus mortal. Ele teve uma vida relativamente boa dada as circunstancia da catástrofe humana. Um ambiente seguro, o afeto protetor e controlador da mãe, alimentos em conserva e o melhor da antiga cultura de seu povo, as melhores músicas, obras literárias, pinturas e filosofias que existiram e que cabiam na gigantesca memória da mãe. É claro que nem tudo foram flores, toda família passa por crises. Teve conflitos com ela e sua personalidade ultra racional, seu controle total sobre os espaços, sua ininterrupta vigilância, sua lógica científica inquestionável. Brigou, gritou, se revoltou na juventude, queria liberdade, duvidava daquela imposição de isolamento, queria acreditar que havia alguma chance de haverem outros lá fora. Tentou fugir, ela não permitiu... ele acabou convencido pelo medo e pelo amor. Já velho voltou a pensar no mundo lá fora. Sabia que mesmo com todos os recursos medicinais da mãe uma dia iria morrer. Ardeu-lhe novamente depois de tantos anos a curiosidade por trás dos olhos, queria ver pelo menos uma vez o mundo de seus parentes, mesmo que esse mundo estivesse morto. Diante da própria finitude não tinha mais nada a perder, precisava ver para morrer em paz. Sabia que sua mãe nunca morreria antes, e que enquanto estivesse vigiando não permitiria sua saída. Ele não a culpava mais por isso, essa era sua missão, sua programação existencial, ela não podia ser convencida do contrário. Então fez a única coisa que podia, abriu a caixa de força e desligou o reator nuclear da casa, silenciando o computador central que aprendeu a chamar de mãe. Subvertendo a ordem de seu universo de clausura. Em meio a escuridão acendeu uma lanterna e caminhou lentamente por entre os corredores e salas até a grande porta de chumbo da saída. Abriu a tranca com as mãos tremulas e de um pulo se jogou ao desconhecido do mundo. Os olhos ainda fechados, o medo e alegria a palpitar-lhe o coração. Era o momento mais excitante e revelador de sua vida tediosa e confortável. Sentia que só agora, nesse instante, tornava-se sujeito de si mesmo. Com apenas um passo para fora era desbravador. Abriu os olhos, viu uma enorme planície verde, o céu azul, a luz forte e quente do sol exuberante que cobria tudo. A linha infinita e misteriosa do horizonte. Avistou uma arvore e ouviu ao longe o canto dos pássaros que só conhecia por gravações. Com os olhos cheios de lágrimas, respirou fundo e sentiu que nunca estivera tão vivo. Depois caio ao solo.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Sobre o anti-futurismo indígena e a descolonização do imaginário


   Depois de ler o político e poético texto intitulado “Repensando o apocalipse: manifesto anti-futurista indígena” do Indigenous Action, um movimento anarco indígena norte americano pensei: O imaginário capitalista ocidental se desenvolveu ao longo do século XX acompanhado pelo gênero ficção cientifica, produzido principalmente nos Estados Unidos, tanto na literatura como no cinema e TV. Gênero esse que teve grande influência na minha formação e ainda hoje muito me atrai. Nele sempre foram explorados temas como apocalipse, catástrofes ambientais, epidemias mortais, sociedades distópicas futuristas. Muitos dos clássicos da literatura de ficção cientifica como “1984” de George Orwell, “Admirável mundo novo” de Aldous Huxley. E filmes como “Matrix”, “Mad Max” ou as muitas versões de apocalipse zumbi. Mostram mundos que passaram por uma grande destruição e construíram sociedades diatópicas. Mas de que humanidade é essa a que se referem? Que mundo é esse que acaba e dá lugar a tais pesadelos? Estão falando do mundo capitalista ocidental eurocêntrico. Que para qualquer pessoa minimamente informada está a um século no limiar da ruína.    
         Por um lado essas obras trazem uma visão sombria e pessimista de futuro, que releva uma forte crítica ao sistema social, econômico e político no qual vivemos e que parece só piorar tendendo a catástrofe (e é isso que tanto me atrai em sua narrativa e estética). Por outro lado podemos através desse tipo de obra de arte/produto cultural de massa perceber como o imaginário capitalista criou um fetiche pelo apocalipse, pela catástrofe, pelo colapso e pela distopia que essa destruição pode gerar.  Tememos o fim e ao mesmo tempo o desejamos de forma mórbida e muitas vezes idealizada. É como se somente o fim do mundo pudesse nos livrar dessa sociedade que se degrada em barbárie. Em uma interpretação conservadora e reacionária poderia se pensar que esse tipo de obra parece dizer que com o fim do capitalismo viria o fim do mundo também. Como se a única outra opção ao atual sistema fosse a distopia pura e brutal. Como se o que vivêssemos hoje já não fosse assim...
         Porem se tomarmos como perspectiva a vivencia histórica dos povos indígenas de todos os lugares do planeta, em todos os continentes invadidos e escravizados pelos europeus. Percebemos que para eles o apocalipse já aconteceu. Os mundos indígenas foram destruídos, populações exterminadas, modos de vida apagados e silenciados, reduzidos a folclore ou marginalizados. Para quem já viu o mundo acabar, a queda do céu como os yanomami, tudo que veio depois foi resistência e reinvenção. Para esses povos originários a distopia começou em 1500 com o batismo de América. Para os povos indígenas o capitalismo não trará o apocalipse ele é o apocalipse. A sua visão de futuro resta imaginar exatamente o fim do capitalismo, seu colapso que levará não sem morte, caos e destruição a um outro mundo possível. E que sabemos possível porque a memória indígena ainda viva permite saber, pois já existiu e por tanto pode ser repensado como novo paradigma, a partir dos conhecimentos e experiências locais, tradicionais, para um novo humano ou pós-humano. Imaginar um mundo pós-capitalista é descolonizar o imaginário em uma postura anti-futurista que só poderia nascer mesmo do potencial de rebeldia e resistência  dos povos explorados e escravizados da história.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

A febre do rato

A sociedade está enferma. As pessoas padecem, faltam-lhes ar respirável e justiça. O corpo doente cambaleia, precisa parar... O corpo social se paralisa. Greve geral declara a carne em definhamento. Convulsionam-se os membros e as instituições. Cai o governo, desgovernam-se. As bocas rosnam e babam insanidade. Os olhos embotados de lágrimas e horror. Espalha-se o câncer e a violência. A Ordem oprime, desvia a atenção, dispersa, falseia. Estancam-se os fluxos sanguíneos, fundem-se os órgãos em massa disforme. Desordenam-se as estruturas psíquicas e coletivas em revolução. Guerreiam as células e funções, as ideologias da vida e da morte. Regurgita-se a má consciência. Cessam-se as atividades motoras. Transpira de medo, grita e chora o corpo febril e distinto em sua auto incubação. O corpo atado pelo Poder se quebra, se desconstrói, se desmonta, se reata, se refaz, renasce de si mesmo. Novamente Corpo-Ser. Atravessou a linha, o devir... o pós-humano, o pós-capitalismo. A morte do que tem que morrer é lei. Exorciza-se, extirpa-se o putrefato, arde em febre e delira até revelar a cura na doença!