domingo, 15 de maio de 2016

Aplicativo inerente

Ao longo do dia, nas horas de tédio, sacava disfarçadamente o celular do bolso e acionava o tal aplicativo. Uma espécie de correio elegante moderno que lhe prometia encontros, flertes, tudo aquilo que sua vida atarefada e reclusa lhe negava. Talvez até encontrasse algum tipo de amor, liquido que fosse! Fantasiava com as fotos que surgiam. E ao ver as muitas combinações que havia feito, mesmo sem nunca ter encontrado pessoalmente nenhuma delas, quase se sentia o conquistador que nunca fora. Ilusão virtual! Mas quando a tela lhe dizia: Não há ninguém perto de você. Ele levantava a cabeça e a multidão que lhe rodeava parecia mais inacessível que as fotos que colecionava. A verdade desse aplicativo não está no que ele promete, mas no que disfarça.  Inventaram aplicativos para encontros porque os para solidão já nasceram acoplados irremediavelmente ao nosso peito. 

terça-feira, 10 de maio de 2016

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Lênin vai à praia

O velho comunista russo, que fez uma revolução, quem diria que mesmo depois de morto ainda lhe restaria mais consciência de classe com os vivos do que muito vivo-morto! Em um belo dia, desses muitos da eternidade, entediado com seu exílio da vida e depois de ler o camarada Jorge Amado, o velho militante resolve se dar férias do frio celestial do além, parecido com sua amada União Soviética, e partir em viagem aos trópicos. Que dizem ser quente e erótico como o inferno, só quem sem a parte do pecado. Assim parte para a Bahia, onde ouviu dizer que havia nascido a civilização do futuro, o novo mundo onde os povos se misturavam e saldavam a diversidade. Diferente do antigo continente frio e fascista. Ao colocar seus pés mortos na areia quente e fofa da praia, ao admirar a dança sensual dos coqueiros ao som do misterioso mar e as luzes escaldantes do sol vermelho que brilhava paternal e indiferente para todos, uma alegria trágica tomou seu semblante. Não sabia se ria ou se chorava diante da exuberância do litoral. Sobre aquele sol comunista todos pareciam bêbados de alegria. Mesmo a morte, sempre temida, ali parecia perder para a vida exagerada e transbordante. O paraíso de que falavam os cronistas europeus do século XVI, a terra sem males, onde tudo que planta dá! A riqueza natural parecia poder alimentar infinitamente todos os povos que tem fome. Mas ao chegar mais perto, encontrou seres humanos que se faziam de invisíveis para sociedade com seu trabalho necessário e silencioso. Ele viu os guarda sois e cadeiras alugadas a uma classe de humanos brancos e gordos, vindos de terras antigas e longínquas, beber e comer do banquete tropical tomado de assalto. Enchendo suas barrigas enormes e insaciáveis, acumulando em seus corpos flácidos as dobras de seu lucro ambicioso. A classe que os alimentava lembrava os camponeses de sua terra natal, e os comilões mantinham ares de nobreza czarista. Com a diferença que aqui os trabalhadores tinham uma pele negra como o chocolate europeu feito do cacau baiano extraído com violência imperialista das terras brasileiras.  Reviu em sua memória toda a história da luta de classes. O mesmo trabalho que sustenta o trabalhador também é a condição de sua escravidão. Lembrou de sua luta, de seus fracassos e sonhos de homem vivo e dos olhos mortos uma lágrima caia em nome dos que ainda vivem ou apenas sobrevivem. Suas ideias de revolução, belas e heroicas, mesmo que almejadas  por muitos ainda parecia ser recusada ou tidas como ilusão. Porque não se revoltam os explorados dessa terra? Do mar esmeralda Jorge Amado em uma canoa, de chapéu de palha e terno branco, lançou-lhe um sorriso carinhoso, mas com um leve tom de sarcasmo de quem em suas palavras muito contou da história desse país. Ao voltar para o além, ainda confuso com sua experiência, misto de gozo e tristeza, sem saber o que será da civilização tropical do futuro que sofre dos mesmo problemas do passado. E mesmo ateu, invoca Deus para lhe perguntar: o que será da humanidade? Deus por sua vez, com sua incorrigível mania de mistério, tanto com os vivos como com os mortos, lhe responde em seu silêncio de divindade: O por vir...