quinta-feira, 7 de maio de 2020

Sobre o anti-futurismo indígena e a descolonização do imaginário


   Depois de ler o político e poético texto intitulado “Repensando o apocalipse: manifesto anti-futurista indígena” do Indigenous Action, um movimento anarco indígena norte americano pensei: O imaginário capitalista ocidental se desenvolveu ao longo do século XX acompanhado pelo gênero ficção cientifica, produzido principalmente nos Estados Unidos, tanto na literatura como no cinema e TV. Gênero esse que teve grande influência na minha formação e ainda hoje muito me atrai. Nele sempre foram explorados temas como apocalipse, catástrofes ambientais, epidemias mortais, sociedades distópicas futuristas. Muitos dos clássicos da literatura de ficção cientifica como “1984” de George Orwell, “Admirável mundo novo” de Aldous Huxley. E filmes como “Matrix”, “Mad Max” ou as muitas versões de apocalipse zumbi. Mostram mundos que passaram por uma grande destruição e construíram sociedades diatópicas. Mas de que humanidade é essa a que se referem? Que mundo é esse que acaba e dá lugar a tais pesadelos? Estão falando do mundo capitalista ocidental eurocêntrico. Que para qualquer pessoa minimamente informada está a um século no limiar da ruína.    
         Por um lado essas obras trazem uma visão sombria e pessimista de futuro, que releva uma forte crítica ao sistema social, econômico e político no qual vivemos e que parece só piorar tendendo a catástrofe (e é isso que tanto me atrai em sua narrativa e estética). Por outro lado podemos através desse tipo de obra de arte/produto cultural de massa perceber como o imaginário capitalista criou um fetiche pelo apocalipse, pela catástrofe, pelo colapso e pela distopia que essa destruição pode gerar.  Tememos o fim e ao mesmo tempo o desejamos de forma mórbida e muitas vezes idealizada. É como se somente o fim do mundo pudesse nos livrar dessa sociedade que se degrada em barbárie. Em uma interpretação conservadora e reacionária poderia se pensar que esse tipo de obra parece dizer que com o fim do capitalismo viria o fim do mundo também. Como se a única outra opção ao atual sistema fosse a distopia pura e brutal. Como se o que vivêssemos hoje já não fosse assim...
         Porem se tomarmos como perspectiva a vivencia histórica dos povos indígenas de todos os lugares do planeta, em todos os continentes invadidos e escravizados pelos europeus. Percebemos que para eles o apocalipse já aconteceu. Os mundos indígenas foram destruídos, populações exterminadas, modos de vida apagados e silenciados, reduzidos a folclore ou marginalizados. Para quem já viu o mundo acabar, a queda do céu como os yanomami, tudo que veio depois foi resistência e reinvenção. Para esses povos originários a distopia começou em 1500 com o batismo de América. Para os povos indígenas o capitalismo não trará o apocalipse ele é o apocalipse. A sua visão de futuro resta imaginar exatamente o fim do capitalismo, seu colapso que levará não sem morte, caos e destruição a um outro mundo possível. E que sabemos possível porque a memória indígena ainda viva permite saber, pois já existiu e por tanto pode ser repensado como novo paradigma, a partir dos conhecimentos e experiências locais, tradicionais, para um novo humano ou pós-humano. Imaginar um mundo pós-capitalista é descolonizar o imaginário em uma postura anti-futurista que só poderia nascer mesmo do potencial de rebeldia e resistência  dos povos explorados e escravizados da história.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

A febre do rato

A sociedade está enferma. As pessoas padecem, faltam-lhes ar respirável e justiça. O corpo doente cambaleia, precisa parar... O corpo social se paralisa. Greve geral declara a carne em definhamento. Convulsionam-se os membros e as instituições. Cai o governo, desgovernam-se. As bocas rosnam e babam insanidade. Os olhos embotados de lágrimas e horror. Espalha-se o câncer e a violência. A Ordem oprime, desvia a atenção, dispersa, falseia. Estancam-se os fluxos sanguíneos, fundem-se os órgãos em massa disforme. Desordenam-se as estruturas psíquicas e coletivas em revolução. Guerreiam as células e funções, as ideologias da vida e da morte. Regurgita-se a má consciência. Cessam-se as atividades motoras. Transpira de medo, grita e chora o corpo febril e distinto em sua auto incubação. O corpo atado pelo Poder se quebra, se desconstrói, se desmonta, se reata, se refaz, renasce de si mesmo. Novamente Corpo-Ser. Atravessou a linha, o devir... o pós-humano, o pós-capitalismo. A morte do que tem que morrer é lei. Exorciza-se, extirpa-se o putrefato, arde em febre e delira até revelar a cura na doença!

sábado, 2 de maio de 2020

Notícias do pós-apocalipse


A humanidade todos já sabiam não ia bem. Cientistas da ficção e profetas da ciência sempre apontaram para o fim do mundo. Pois bem, assim foi...Um dia acordei, não lembro a data ou horário, isso já não faz mais sentido agora. E minha espécie havia sumido da face da terra. Ando pela metrópole deserta. A solidão saiu de seu sentido metafórico e ganhou proporções cósmicas. Vivo sobre os vestígios de uma civilização morta, a qual participei, mas já nem sei... Sobraram construções, objetos, memórias. As vezes ainda vejo o vulto de pessoas nas esquinas ou sinto como se alguém me chamasse. Ainda vou ao mercado, não preciso mais olhar os preços. Ainda vou ao parque, tomo café na padaria. Ainda vou a banca de jornal, notícias velhas para lembrar que findaram as novidades. Sou um museu vivo a perambular sem futuro. Ainda vou na sexta-feira no fim de tarde ao boteco do Neto. A sexta não existe mais, mas o fim de tarde segue marcante com o sol cumprindo seu giro. Sento na mesma mesa de sempre, nos fundos embaixo das árvores. Bebo cerveja e ouso aquele vinil sagrado do Paulinho da Viola. Dou gargalhadas, choro baixinho, conto piada, batuco na mesa de plástico e peço a saideira que eu mesmo vou buscar. O atendimento do Neto piorou muito sem ele. Sinto falta, mas não exatamente saudade, posto que tudo que tenho é o passado que por tanto passa a ser o presente sem distinção. Tudo parece que ainda está ali, encoberto pelo invisível. O irônico de tudo é que antes a vida me assustava, as obrigações, os erros. Hoje não existe mais angústia, pois o teatro humano se esvaziou de máscaras e sombras revelando nossa irrelevância para a continuidade do planeta e do universo. Que libertação é se livrar do antropocentrismo! Calaram-se os discursos e teorias, ficou a vida nua, selvagem e inquestionável, brotando por toda parte. O mato devorando as ruas. Até o medo da morte calou-se com a extinção. Ser o último já me torna um pouco morto. O fim é só o ponto de vista do que permanece. E afinal algo sempre permanece... Um resquício, um resíduo, uma semente. Os demais seres vivos passam bem. As formigas sequer perceberam nosso ausência.   

 Último Ser Humano

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Conselhos de um recém falecido


Da vida, essa efêmera e contraditória experiência sem sentido prévio ou finalidade. Onde o pouco que se ganha está destinado a perder. Fantasma não tem bolso. O importante é cultivar uma memória-espírito aderente aos detalhes. Exercitar uma imaginação incisiva, expansiva de tons e texturas. Lembrar e montar as lembranças como um filme, as melhores Histórias de rir e chorar. Salientando o gozo secreto que se esconde nos instantes mais comuns. Um beijo, uma palavra, o trago de alguma coisa. E sempre imaginá-las mais, recordá-las mais, mais profundas, mais certas, mais vivas e mais reais que o real. Tantas vezes mais, que toda a dor nas margens do esquecimento se torna aceitável. E depois vem o retorno, o eterno retorno....