Epicuro afirmava que a morte é um nada, tendo em vista que
todo mal e todo bem provém das sensações, que sessão com a morte (pelo menos as
corpóreas). A lógica é bem simples e pode vir a soar até como um tipo de piada.
Se estamos vivos a morte não está presente, se a morte chega, nós e que já não
estamos. Com esse argumento os epicuristas tentavam anular o mais temido dos
males humanos, pois o medo da morte em última instancia está por trás de todos
os outros medos sejam quais forem.
Em um
pensamento de imanência parece inegável que a morte nada significa para o
morto, as formas de se morrer que envolvem dor podem nos apavorar, mas a morte
em si é o fim de toda dor o que de certo ponto de vista pode até ser desejável.
Gilberto Gil em sua canção Não tenho medo da morte diz; ''não tenho medo da morte, mas sim medo de
morrer''. Assim ele concorda com Epicuro e desloca o problema da morte em si,
que é um nada, para o problema do medo que pensar na morte nos gera. A morte
então é o anuncio do desconhecido, para quem morre não há volta, para quem fica
resta a dúvida apavorante do que virá.
É impossível
para uma pessoa visualizar a própria morte, mesmo nos sonhos quando morremos
acordamos (talvez morrer seja de certa forma também acordar). Assim sendo, o
que podemos ter da morte é a penas a impressão de um vivo, um observador
externo ao fenômeno. Desta forma a morte só pode nos afetar de forma externa,
ou seja, quando é a morte do outro. Quando uma pessoa amada morre, essa morte
nos atinge de duas formas. Primeiramente nos desloca de nossa vida cotidiana
anestesiante, e nos relembra que todos iremos morrer. A morte do Outro nesse
caso se configura em um tipo de aviso, quase uma ameaça; o próximo pode ser
você. Em segundo lugar existe a perda, a não mais presença da pessoa amada, a
falta, a saudade e o vazio deixado pelos que partiram.
A dor provocada pela morte do Outro em geral é
uma dor egoísta, não lamentamos pelo morto verdadeiramente (já que não podemos
saber ao certo se ele está em melhores ou piores condições do que quando estava
vivo), lamentamos por nossa própria dor, por nossa perda. Por isso em todos os
tempos, em todas as culturas e religiões existiram ritos fúnebres que buscavam
simbolizar a morte do Outro dando-lhe algum significado transcendente para
minimizar a dor de nossa perda irreparável e nosso próprio medo de morrer. O
Outro como nosso espelho, nossa forma de autopercepção e autoconstrução, quando
morre nos gera medo, saudade e nos lança a questão, seria a morte (sempre
trágica) a única forma de valorizarmos a vida (sempre banal)? Ao encararmos o
rosto da pessoa amada morta, minimizamos seus defeitos e erros e exaltamos suas
qualidades e feitos de forma a afirmamos a vida daquele indivíduo perante sua
finitude. É fato de que não existe
pessoas sem defeitos nem vidas sem erros e que não podemos evitar a morte. Mas
podemos lutar contra o medo da morte que atravanca a vida (a morte em vida). Se
deslocássemos a significação da morte do Outro do medo e da perda para a
afirmação da vida, transformaríamos o sofrimento em valor positivo. Se
valorizássemos nossas vidas como valorizamos a vida perdida do morto, talvez
pudéssemos ter uma vida mais plena aceitando a finitude com a alegria trágica
de quem ama ardentemente o pouco que se pode ter.
Dedicado a memória do eterno amigo Mateus Gandara.